Arquivo do autor:Sancarmo
As mentiras que contamos a nós mesmos
Me sinto dormente. Só quero confessar isto, que me sinto dormente. Pra ser preciso, uma dormência mental, pois para certas coisas é melhor viver inconsciente do que se passa ― a isso atribuo o estado de “dormência mental”: a fim de fugir de certas percepções equivocadas e desagradáveis, torna-te dormente, finge-te inconsciente que nem uma pedra. Abafa o sofrimento. Viva como se morto. Pro bem ou pro mal. No meu caso mais pro mal do que pro bem, pois a lá um zumbi filosófico não experiencio o mundo como poderia e tudo isso poda minhas habilidades observatórias, faz de mim menos escritor, e quando não me fogem palavras ou ideias para uma crônica, acho todas elas ruins, parecem um diário, estilo o qual tento fugir ao máximo, mas não consigo, porque até hoje não sei exatamente o que constitui uma crônica, tendo sido as minhas incursões no gênero mais pro lado metafísico, ensaístico, quase, do que adequadamente urbano, igual a maioria. Em resumo, escrever crônicas já me foi mais fácil. Leia o resto deste post
Cego de amor
Conforme o rol de experiências a pôr na página termina, esforço-me para imaginar uma cena. As palavras vem difíceis, e mais parece que exponho meu cérebro e o empalo uma espada do que propriamente escrevo. Leia o resto deste post
Breve aula de literatura
“Este é o momento/ em que os cinco sentidos se rebelam/ eles escapariam de bom grado/ como ratos de um navio que afunda”, são versos do poema Cinco homens do poeta polonês Zbigniew Herbert, que continua:
antes que a bala chegue a seu destino
o olho perceberá o voo do projétil
o ouvido registrará o sussurro afiadoas narinas se encherão de fumaça cáustica
uma pétala de sangue roçará o palato
o toque se contrairá e depois afrouxará
agora jazem no chão
cobertos de sombra até os olhos
o pelotão se afasta
suas abotoaduras
e capacetes de aço
estão mais vivos
que os homens prostrados junto ao muro
E o poema segue por mais versos, mas paro por aqui. Basta “as narinas se encherão de fumaça cáustica” e “uma pétala de sangue roçará o palato”. Sem dúvida é uma aula de ponto de vista sobre como fazer o leitor vivenciar o que o personagem vive; neste caso, o momento em que a arma é disparada, “o momento em que os cinco sentidos se rebelam.” Leia o resto deste post
Essa coisa chamada tempo
Existem escritores com um volume de obras conhecidas, obscuras e as que ainda estamos por conhecer, e os escritores que escreveram uma novela e dois romances meio novela, como Kafka, Juan Rulfo, ou até Joyce, dos quais toda a sua obra é isso, cinco, quatro ou três livros. Eu não quero ser como eles, nenhum deles. Mas também não quero ser como um Robert A. Heinlein, Philip K. Dick, ou meio que o Alan Moore, no qual têm uma obra extensa que, no entanto, te faz perguntar: vale a pena ler tudo isso? Leia o resto deste post
Mito do Inferno
Ali, muito, quase tudo, era vermelho; exceto o rio de fogo cujas vezes cuspia pro alto e o homem que conversava com o demônio; bom, ele não era, mas gradativamente ficava vermelho conforme os dois desciam numa estrada em círculo. Leia o resto deste post
“A verdade vos libertará”
Se tivesse de ser professor, seria de Filosofia. A matéria mais difícil de ensinar; como explicar que a Filosofia estuda isto e aquilo igual se diz que Química ou Física estudam os átomos, suas reações e movimentos na natureza? Diferente da Matemática, História ou Química, Filosofia é o único estudo com verbo: filosofar. Para entender o que faz a Filosofia é preciso saber o que faz quem filosofa e quais áreas da natureza ele está preocupado em explicar. Leia o resto deste post
Cada um no seu quadrado
Cedo ou tarde me confrontam com tal pergunta: “Você é ateu?” Pergunta boba, e esconde um recheio de implicações. Leia o resto deste post
Empreende®dor
O mundo está acabando e tem duas crianças chorando. Eles estão na sua frente, uma menina e um menino. O menino chora como uma menininha, isto é, “chora” no sentido eufêmico de escândalo. A menina chora só do olho esquerdo, e você, bem, você, meu camarada, você olha a cena e a vive com tanto pesar — o choro fere a tua alma, e você quer matar o menino por isso — como se a culpa do mal na Terra fosse sua. Mas tem um detalhe, detalhe ínfimo, fatídico: você tem um lenço na mão.
Ritual prático para invocação da musa
Toda vez que escrevo sem estar bêbado, ou seja, naturalmente criativo, me analiso da ponta à cabeça e corro a registrar todas as sensações, pensamentos e afins no instante desse milagre para que ele possa ser repetido.